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INTERESSES PRIVADOS E O DINHEIRO PÚBLICO

Contratos são coisas complicadas. Quando envolve mais de duas partes então, mais ainda. Se uma dessas partes for um “ente soberano com direitos difusos” aí a coisa é de arrepiar. Como no caso dos contratos públicos.

Na prática os contratos em geral não são cumpridos preto-no-branco. Quando “assim fica bom pra você?”, está valendo. No caso dos contratos públicos isso até pode acontecer, mas vira confusão séria na eleição seguinte. Sempre tem um adversário político procurando falhas para embelezar denúncias públicas. Por isso muitos contratos ficam paralisados, sem vigência na prática, por causa de dúvidas que não podem ser solucionadas no improviso.

Um certo contrato público muito complicado, mas muito bem sucedido, é o das compensações para mudanças no espectro de radiofrequência. Essas mudanças foram necessárias por causa das novas tecnologias dos celulares. O sinal da telefonia móvel precisou avançar sobre frequências da televisão. Primeiro, em 2014, foi o leilão do 4G. Em troca as teles, as grandes empresas que operam os celulares, tiveram que oferecer um monte de compensações em equipamentos e serviços para as redes de TV. Até as audiências foram favorecidas. Afinal os conversores foram oferecidos de graça aos 14 milhões de famílias do cadastro único de promoção social. Mais recentemente, em 2021, foi o leilão do 5G, a geração seguinte dos celulares. Nos dois casos houve questionamento de valores, mas a administração dos contratos, até agora, estava indo bem. As teles precisaram constituir um fundo a parte, para pagar as adaptações que garantissem aos telespectadores um sinal de TV de qualidade.

Os contratos foram engenhosos. As teles tiveram que constituir duas empresas para administrar as obras e os serviços realizados com o dinheiro do fundo de compensações. No caso do 5G o governo foi especialmente generoso. Decidiu que todo o dinheiro que as empresas pagaram no leilão seria direcionado para viabilizar a implantação da nova tecnologia aqui no Brasil. Por outro lado as compensações foram bem mais longe. Deveriam incluir as áreas mais remotas, onde a densidade populacional é baixa e a demanda não compensa comercialmente para as teles.

As empresas disseram que os valores reservados, tanto em 2014 como em 2021 não seriam suficientes para pagar todas as compensações. Erraram. A quase totalidade das compensações previstas em 2014 já foi cumprida. E ainda estão sobrando R$ 500 milhões para gastar (talvez as teles precisem contratar alguns professores de matemática para melhorarem nos cálculos). Então, bora gastar a grana de 2014 que sobrou. Mas atenção: tem que estar de acordo com o contrato que foi assinado há dez anos!

É aí onde está acontecendo algo bem estranho. Os órgãos oficiais autorizaram a aplicação desse dinheiro em seis programas. Um deles autoriza a construção de mais de 4 mil quilômetros de redes de conexão de internet, principalmente nas regiões Centro Oeste e Nordeste. A maior parte das redes – que são conhecidas como “infovias” – é para o Centro Oeste. A questão é que a construção de infovias não fazia parte das compensações do leilão do 4G (2014). Esse tipo de investimento foi proposto no leilão do 5G (2021) e já tem dinheiro investido em obras na região Norte.

Nos dois leilões as compensações foram criadas para adaptar o sinal das emissoras e levar as novas tecnologias de internet para regiões carentes. Por isso, no leilão de 2021 foi destinado mais de R$ 1,3 bilhão para a infovia na região Norte. É um território muito extenso com uma pequena população muito dispersa. O retorno comercial para os provedores é muito limitado. A solução, que já está sendo implantada, são cabos subfluviais que correm por dentro do leito dos grandes rios da Amazônia, diminuindo muito o custo da implantação.

As regiões Centro Oeste e Nordeste já apresentam condições comerciais mais vantajosas para as teles. Não justificaria utilizar o dinheiro de compensações para construir infovias por lá. Muito menos do leilão do 4G (2014) que não previu compensações desse tipo.

Tanto o leilão do 4G como o do 5G receberam várias críticas e levantaram suspeitas por conta de valores estimados para viabilizar as novas tecnologias. Porém, na prática, trouxeram um saldo de várias obras e implantações de sistemas que estão se revelando muito úteis para o país. Não é desejável que, a essa altura, também a gestão dos recursos passe a ser questionada. Neste momento cabe principalmente à Anatel evitar que isso aconteça.

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